Visão e julgamento

Dentro do pavilhão onde se localizavam os Espíritos que dormiam, Aniceto convocou André Luiz ao trabalho: “Você, André, examine detidamente essa irmã. Abstenha-se de todas as considerações do plano exterior. Observe-a com todas as possibilidades e percepções ao seu alcance. ” [1] A pobre alma a sua frente se chamava Ana e, ao perscrutar – lhe a casa mental, descobriu que ela foi a autora de um crime brutal, com requintes de crueldade.

Diante de sua visão espiritual desfilavam cenas horríveis e angustiantes ocorridas em modesta residência localizada em humilde cidade. Dentro da casa, aquela mulher de idade madura e com maldade impassível estampada no rosto, lutava contra um homem bêbado. Ciente de que tinha sido envenenado por meio de bebida mortal, o ébrio chorava copiosamente e pedia perdão. Por piedade, solicitava que não fosse morto, evocando a necessidade de cuidar dos filhos. Ana, completamente transtornada, respondeu com frieza inabalável: “Morrerás mesmo assim. Tenho a infelicidade de amar-te, a ti que pertences a outra mulher! Não quiseste seguir-me e preciso vingar-me! ” [1] subitamente, ela assassinou o companheiro com marteladas no crânio. Não satisfeita, transportou o corpo em um carrinho de mão e o colocou na via férrea. Depositou o cadáver sobre os trilhos, cuidando para que a cabeça fosse decepada quando o trem passasse. Era noite muito escura e não houve testemunhas. A seguir, o amigo espiritual testemunhou a assassina ser cercada por seres que se assemelhavam a verdadeiros bandidos de vestes negras. Agora era a desventurada irmã quem gritava, parecendo estar embriagada de pavor. Acabou vencida por Espíritos tão perversos quanto si mesma, completamente abatida pela loucura incontrolável.

André Luiz teve um primeiro impulso de revolta em razão do crime cometido. Porém, recordou as lições que já havia recebido na colônia “Nosso Lar” e dedicou à desventurada irmã toda a sua compaixão. Aniceto externou sua satisfação com a postura do discípulo: “Estou satisfeito. Seus pensamentos de fraternidade e paz muito auxiliaram essa irmã infeliz. Guarde a certeza disso e continue buscando a compreensão para socorrer e ajudar com êxito. (…) não precisamos comentar qualquer episódio dessas existências vividas em oposição à Vontade Divina. Bastará lembrar sempre que a dívida, em toda parte, anda com os devedores. ” [1]

E se fôssemos nós no lugar de André? Será que a nossa visão do ocorrido guiar-nos-iam na avaliação do fato? E quanto ao que temos aprendido com o Espiritismo? Como conciliar o que vemos, o que sentimos, o que pensamos e o que devemos fazer? Ante uma atrocidade tão monstruosa como essa, emitiríamos bons pensamentos e sentimentos em favor da irmã desequilibrada ou será que partiríamos imediatamente para o julgamento, condenação e execução? Se aquela mulher fosse nossa mãe, esposa ou irmã, não faríamos tudo ao nosso alcance para ajudá-la? Como poderíamos assumir as funções de juiz e executor se não estávamos a par de seu histórico ou ficha espiritual? Não saberíamos sequer dizer se ela recebeu educação conveniente, se teve um lar digno ou afeições sinceras. Como julgar sem estar de posse do processo completo, sem conhecer toda a história, sem levar em conta as atenuantes e agravantes do caso? O que vítima e verdugo tinham em comum? Onde, como e porque teria começado aquele drama tão doloroso para ambos? Como avaliar o quadro obsessivo em que se encontravam? Jesus ensinou: “A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo teu corpo terá luz; se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes são tais trevas! [2] (…) não julgueis, para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a medida com que medis vos medirão a vós. ” [3]

Hoje, perante a imagem de um irmão precisando de auxílio, seja ele criminoso ou vítima, como temos nos portado? Que tal relermos a parábola do bom samaritano [4] e meditarmos nos ensinamentos nela contidos? O Cristo, assim como o Espiritismo, não quer que sejamos exímios observadores da vida alheia e nem juízes implacáveis, mas sim pessoas que praticam a verdadeira caridade – “Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas. ” [5]… Desta forma, façamos o bem sem olhar a quem, despidos de qualquer sentimento de preconceito e sem nos arvorarmos em paladinos da justiça.

Valdir Pedrosa

[1] Os Mensageiros – Pelo Espírito André Luiz, psicografado por Francisco Cândido Xavier – capítulo 23 (Pesadelos).

 [2] Evangelho Segundo Mateus 6:22-23.

 [3] Evangelho Segundo Mateus 7:1-2.

[4] Evangelho Segundo Lucas 10:25-37.

[5] O Livro dos Espíritos – Allan Kardec – 3ª parte – cap. XI (Da Lei de Justiça, de Amor e de Caridade) – questão 886.