Mundo normal primitivo

Allan Kardec, em O Livro dos Médiuns (FEB, 2003:19), anota que “a dúvida, no que concerne à existência dos Espíritos, tem como causa primária a ignorância acerca da verdadeira natureza deles. Geralmente, são figurados como seres à parte na criação e de cuja existência não está demonstrada a necessidade. Muitas pessoas, mais ou menos como as que só conhecem a História pelos romances, apenas os conhecem através dos contos fantásticos com que foram acalentadas em criança”.
Se, de um lado, a observação de Kardec acima citada ainda é comum na vida cotidiana, de outro, também se vê que, uma vez superada a dúvida quanto à existência dos Espíritos, outra surge: onde, então, tais seres se localizam no universo, considerando as suas características e natureza? Dada a relevância do tema, foi ele tratado no tópico “Mundo normal primitivo”, constante do capítulo I da segunda parte de O Livro dos Espíritos, objeto deste artigo. No contexto apresentado, Allan Kardec, na questão 84, perguntou se os Espíritos constituíram um mundo à parte, fora do que vemos, isto é, fora do mundo material, ao que os instrutores espirituais responderam que sim, já que eles integram o mundo dos Espíritos, ou das inteligências incorpóreas.
Com isso, os instrutores da codificação nos ensinaram que há dois mundos, isto é, o espírita (espiritual) e o corpóreo (material), esclarecendo na pergunta 85 ser o espiritual o principal na ordem das coisas, pois é ele quem preexiste e sobrevive a tudo. Tanto isso é verdade que, como orientaram os instrutores espirituais, ao responderem à pergunta 86 de O Livro dos Espíritos, mesmo que o mundo corporal deixasse de existir, ou caso nunca tivesse existido, tal situação não alteraria a essência do mundo espiritual, que, a nosso ver, é o mundo normal primitivo.
Tal explicação guarda sintonia com o reconhecimento da pré-existência e sobrevivência do Espírito em relação ao corpo físico, o que ajuda a explicitar o caráter transitório da vida material. Afinal de contas, somos seres espirituais com experiências carnais, e não seres materiais que passam por experiência espiritual. E tal constatação, quando devidamente compreendida e introjetada em nosso ser, leva-nos a fazer uma reflexão mais profunda sobre os nossos desejos, o modo como temos nos portado nas várias situações da vida e nos relacionado com o mundo material, trazendo não raras vezes a necessidade de uma reformulação do nosso projeto de vida feliz.
Por outro lado, como ensinam os instrutores espirituais na resposta à pergunta 86, apesar de o mundo espiritual e o mundo corpóreo serem independentes, não são isolados entre si. Ao contrário, há, entre eles, uma incessante interação, do que é exemplo a ocorrência dos fenômenos mediúnicos.
Compreendida a questão dos dois mundos, e ciente de que, pela nossa condição e experiência, temos mais facilidade de identificar o mundo corpóreo, Allan Kardec questionou aos instrutores da codificação, na pergunta 87 de O Livro dos Espíritos, se os Espíritos ocupariam uma região determinada e circunscrita no espaço. Em resposta, os instrutores espirituais nos esclareceram que não, pois eles estão por toda a parte e povoam os espaços infindos, acrescentando ainda que: “Tendes muitos deles de contínuo a vosso lado, observando-vos e sobre vós atuando, sem o perceberdes, pois que os Espíritos são uma das potências da natureza e os instrumentos de que Deus se serve para execução de seus desígnios providenciais. Nem todos, porém, vão a toda parte, por isso que há regiões interditadas aos menos adiantados”.
Assim, como bem sintetizado por Allan Kardec, na obra Céu e Inferno, (FEB, 2013:27), temos que:
“O homem compõe-se de corpo e Espírito: o Espírito é o ser principal, racional, inteligente; o corpo é o invólucro material que reveste o Espírito temporariamente, para preenchimento da sua missão na Terra e execução do trabalho necessário ao seu adiantamento. O corpo, usado, destrói-se e o Espírito sobrevive à sua destruição. Privado do Espírito, o corpo é apenas matéria inerte, qual instrumento privado da mola real de função; sem o corpo, o Espírito é tudo; a vida, a inteligência. Ao deixar o corpo, torna ao mundo espiritual, onde paira, para depois reencarnar.
Existem, portanto, dois mundos: o corporal, composto de Espíritos encarnados; e o espiritual, formado dos Espíritos desencarnados. Os seres do mundo corporal, devido mesmo à materialidade do seu envoltório, estão ligados à Terra ou a qualquer globo; o mundo espiritual ostenta-se por toda parte, em redor de nós como no Espaço, sem limite algum designado. Em razão mesmo da natureza fluídica do seu envoltório, os seres que o compõem, em lugar de se arrastarem penosamente sobre o solo, transpõem as distâncias com a rapidez do pensamento.
A morte do corpo não é mais que a ruptura dos laços que os retinham cativos”.
Diante das lições que nos foram passadas pelos instrutores espirituais, do reconhecimento de nossa condição de seres espirituais (com experiências corpóreas) e da consciência da existência de planos distintos da vida (espiritual e material) que incessantemente se interrelaciona, somos levados a refletir sobre a necessidade do trabalho contínuo no bem, de fazermos nossa reforma íntima e de envidar os melhores esforços na elevação e melhoria de nossa sintonia, o que são condições para, no agora, construirmos o futuro venturoso que tanto almejamos.

Frederico Barbosa Gomes

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